O Direito à saúde mental

 

CONCEITOS E RECONHECIMENTO LEGAL

 

10 de outubro, dia mundial da saúde mental

 


 

O entendimento da saúde como um direito do indivíduo é instituído no Brasil a partir da chamada Constituição Cidadã de 1988. Em conjunto com a Assistência e a Previdência Social, passa a compor a Seguridade Social brasileira. Consta no Art. 196 do referido documento que a Saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação (BRASIL, 1988, p.83).

Considerada um marco na luta por direitos, a Constituição Federal (CF) de 1988 prevê que todo cidadão tenha livre acesso ao tratamento de saúde, pautando execução nas diretrizes constantes em seu Art. 198, o qual informa:

[…] As ações e serviços públicos de saúde integram uma rede regionalizada e hierarquizada e constituem um sistema único, organizado de acordo com as seguintes diretrizes:

I – descentralização, com direção única em cada esfera de governo;
II – atendimento integral, com prioridade para as atividades preventivas, sem prejuízo dos serviços assistenciais; III – participação da comunidade (BRASIL, 1988, p.83).

A instituição de um sistema único de saúde, que apresenta uma rede de serviços à disposição da população, com foco em ações preventivas, buscando a integralidade do atendimento, é elemento novo na história da saúde do Brasil. O acesso anteriormente condicionado a contribuições de diferentes ordens cede lugar a uma concepção de direito do cidadão. Trata-se de romper com um modelo excludente de atenção à saúde, que deixava ampla parte da população brasileira à mercê do atendimento de instituições como as Santas Casas de Misericórdia. Assim, a saúde era posta como um direito restrito, não sendo de responsabilidade estatal viabilizá-lo à população.

Partindo desse contexto, a Lei nº 8.080, de 19 de setembro de 1990, ao dispor sobre as condições para promoção, proteção e recuperação da saúde, organização e funcionamento dos serviços correspondentes e dá outras providências, sinaliza em seu Art. 2º que “a saúde é um direito fundamental do ser humano, devendo o Estado prover as condições indispensáveis ao seu pleno exercício” (BRASIL, 1990, p.1).
Tal normativa corrobora o texto descrito na Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH), adotada pela Organização das Nações Unidas (ONU) em 10 de dezembro de 1948, que afirma:

1.Toda a pessoa tem direito a um nível de vida suficiente para lhe assegurar e à sua família a saúde e o bem-estar, principalmente quanto à alimentação, ao vestuário, ao alojamento, à assistência médica e ainda quanto aos serviços sociais necessários, e tem direito à segurança no desemprego, na doença, na invalidez, na viuvez, na velhice ou noutros casos de perda de meios de subsistência por circunstâncias independentes da sua vontade (Declaração Universal dos Direitos Humanos, p. 6, 1948).

Importante observar que a saúde do ser humano não se limita à ausência de doenças, contempla todas as áreas necessárias à sobrevivência do indivíduo. Tais afirmações estão embasadas no conceito expresso na Constituição da Organização Mundial de Saúde (OMS), de 22 de julho de 1946, que se refere à saúde como um estado de completo bem-estar físico e mental, e não consiste apenas na ausência de doença ou enfermidade.

Ainda com base no documento supracitado, destaca-se o necessário cuidado que deve ser direcionado à saúde mental do indivíduo, entendendo-se esta como um direito do ser humano e que deve ser garantido em conformidade com o que rege a Lei nº 10.216, de 06 de abril de 2001, que dispõe sobre a proteção e os direitos das pessoas portadoras de transtornos mentais e redireciona o modelo assistencial em saúde mental.

A saúde mental no Brasil esteve por longo período negligenciada, marcada pelo preconceito, mitos e estruturada a partir do modelo hospitalocêntricomanicomial.

Para superar tais problemas, a Reforma Psiquiátrica se propôs a construir um novo modelo de atendimento aos sujeitos com transtornos mentais.

Assim, A Reforma Psiquiátrica é processo político e social complexo, composto de atores, instituições e forças de diferentes origens, e que incide em territórios diversos, nos governos federal, estadual e municipal, nas universidades, no mercado dos serviços de saúde, nos conselhos profissionais, nas associações de pessoas com transtornos mentais e de seus familiares, nos movimentos sociais, e nos territórios do imaginário social e da opinião pública.

Compreendida como um conjunto de transformações de práticas, saberes, valores culturais e sociais, é no cotidiano da vida das instituições, dos serviços e das relações interpessoais que o processo da Reforma Psiquiátrica avança, marcado por impasses, tensões, conflitos e desafios. (BRASIL, 2005, p. 06).

Entender o movimento da Reforma Psiquiátrica no contexto da saúde mental é perceber o indivíduo como cidadão autônomo que deve ser respeitado e tratado em meio à sociedade. Com tal orientação, a pessoa com transtorno mental passa a ser alvo de estratégias de cuidado que buscam resguardar sua integridade física e psíquica.

No campo dos direitos, tais conquistas são registradas no Art. 2º, da Lei nº 10.216/2001, que informa, inicialmente, a necessidade de, nos atendimentos em saúde mental de qualquer natureza, a pessoa e familiares ou responsáveis serem formalmente esclarecidos sobre seus direitos.

Dentre os direitos, vale destacar o inciso II, o qual informa que a pessoa com transtorno mental deve ser tratada com humanidade e respeito. Nesta mesma passagem, é possível identificar a referência aos cuidados no âmbito familiar e comunitário, além da menção ao trabalho, com vistas a beneficiar sua saúde. Tais colocações direcionam para o entendimento da saúde mental como direito humano, estando previsto pelas normativas vigentes, porém, vivenciados em uma realidade ainda em construção.

Segundo Correia (2011),

“Direitos humanos são os direitos fundamentais de qualquer pessoa, independentemente de raça, sexo, idade, religião, opinião política, origem nacional ou social etc. e têm como objetivo garantir que a dignidade de todo ser humano não seja desrespeitada (CORREIA, 2011, p.20).”

O respeito à dignidade humana, a partir dos princípios da igualdade, liberdade e fraternidade vigora no campo dos direitos humanos. No campo da saúde mental, os indivíduos sofreram muitas violações de direitos com tratamentos desumanos de confinamento em hospitais psiquiátricos, nos quais permaneciam por toda a vida sem estímulos de desenvolvimento biopsicossocial. Ainda hoje, devido às más condições dos serviços públicos de saúde, o atendimento não chega a todos devido à falta de profissionais, insumos, organização de fluxos de atendimentos entre os serviços e, principalmente, a ausência de conhecimento e orientação aos familiares que convivem com esses usuários na rotina doméstica.

Carvalho (1998), afirma que:

“Dizem-se humanos os direitos que o indivíduo é titular só pela razão básica de pertencer ao gênero humano. Esses direitos referem-se a faculdades naturais […] considerando o ser humano indiscriminável, sob qualquer consideração. Esses direitos são imprescindíveis à sua segurança pessoal servindo ao seu sadio desenvolvimento no meio social em que vive […] na valoração dos direitos humanos, não é lícito cogitar-se de condicionamento algum (raça, cor, sexo, idade, religião, cultura, classe social etc.) Ao Estado cabe […] cuidar e defender esses direitos que são respeitados em qualquer regime estatal onde impere a liberdade democrática representativa (CARVALHO, 1998, p. 47).”

A relevância dos direitos humanos está centrada na proteção da vida do indivíduo, no entendimento de que as pessoas devem ser respeitadas e seus direitos assegurados, não sendo alvo de discriminação ou violência, por exemplo, cabendo ao Estado defender tais direitos em meio a uma sociedade democrática.

Porém, diga-se de passagem, considerando o contexto da saúde mental, ainda há muito a ser conquistado.

Partindo da análise sobre como a sociedade vem se manifestando em relação aos transtornos mentais, sendo estes associados a diferentes conceitos e entendimentos, percebe-se a lógica do distanciamento e da exclusão dos indivíduos tomados ora como seres desconexos da realidade, alienados, insanos, ora como bruxos ou gurus a depender do contexto sociocultural ao qual esteja relacionado.

Ao longo da história da humanidade, foram adotadas múltiplas estratégias de enfrentamento da loucura e/ou transtornos mentais de diferentes ordens, entre outras doenças, a exemplo do “Nau dos Loucos”, no qual, segundo Foucault (1997), os indivíduos considerados loucos eram postos em porões de navios que seguiam navegando sem destino na imensidão do oceano em busca do resgate da razão.

Por longas décadas, a pessoa com transtorno mental teve seus direitos humanos desrespeitados, tendo na discriminação uma das principais ocorrências.

Fato este que impulsionou uma série de violações de direitos, como maus-tratos em ambientes hospitalares, falta de higiene, negligência na alimentação, abandono por familiares nas ruas e em asilos.

Cabe esclarecer que diferentes fatores podem estar relacionados com alterações no campo da saúde mental do ser humano, como condições socioeconômicas, relacionais e biológicas. Trata-se de uma área extremamente complexa e que demanda atenção especializada. Qualquer pessoa está passível a desenvolver algum transtorno mental, principalmente quando inserida em um cotidiano com altos níveis de estresse e/ou associado ao quadro de violação de direitos, dentre outros fatores a serem considerados.

Ademais, a superação do preconceito referente à pessoa com transtorno mental é um processo em construção. Ações educativas e qualificação dos trabalhadores atuantes na saúde mental são caminhos para construção de uma nova cultura relacional com estas pessoas.
Os avanços registrados no campo da regulamentação do acesso à saúde como direito do cidadão ainda não garantem sua consolidação. Faz-se necessário perceber a saúde mental como direito humano, conforme afirmado anteriormente, uma vez que a pessoa com transtorno mental demanda por políticas públicas que potencializem o seu pleno desenvolvimento enquanto ser social.


Esse texto é parte integrante do documento ‘Saúde Mental, Humanização e Direitos Humanos’  que tem como autores Aline Brauna dos Santos, Grayceane Gomes da Silva, Maria Erica Ribeiro Pereira e Roberta Sampaio de Brito disponível aqui para leitura completa

Fonte: Cadernos Brasileiros de Saúde Mental
ISSN 1984-2147, Florianópolis, v.10, n.25, p.01-19, 2018.

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